lunedì 29 ottobre 2012

15 de Janeiro de 1544: esta es talvéz la carta mas bella que escribiò san Francisco Xavier



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AOS SEUS COMPANHEIROS
RESIDENTES EM ROMA

Cochim, 15 de Janeiro 1544
Duma cópia em castelhano, feita em Coimbra em 1547

SUMÁRIO: 1. Cartas que tem escrito. – 2. Entre os cristãos do Cabo de Comorim: sua ignorância religiosa, modo de os catequizar, tradução das fórmulas catequéticas em língua malabar. – 3-4. Instruções que dá aos domingos sobre os mandamentos e o credo. – 5. Assiduidade das crianças à catequese e desprezo a que votam os ídolos. – 6. Baptiza as crianças que nascem, catequiza jovens e adultos, envia as crianças da catequese a rezar os evangelhos sobre os enfermos em suas casas. – 7. Nos outros lugares segue o mesmo método. – 8. Ânsias de estimular o zelo dos doutores das universidades a irem para as missões converter pagãos. Trabalhos apostólicos e baptismos até cansar os braços. Apoio do Governador às missões e amizade à Companhia de Jesus. – 9. O colégio para indígenas em Goa, confiado a Micer Paulo. – 10. Vícios dos brâmanes. – 11. Modo de agir com os brâmanes: disputas com eles sobre a imortalidade da alma e a cor de Deus; fealdade dos seus ídolos; respeitos humanos em converterem-se. – 12. Segredos doutrinais que lhe confia um brâmane. – 13-14. Suas grandes consolações e alegrias. Missas pelo cardeal Guidiccioni – 15. Confiança na intercessão dos milhares de crianças que baptizou e morreram na inocência.

A graça e amor de Cristo nosso Senhor seja sempre em nossa ajuda e favor. Amen.

1. Há dois anos e nove meses que parti de Portugal e, desde então, vos escrevi de cá três vezes com esta1. Só umas cartas vossas recebi, desde que estou cá na Índia, as quais foram escritas a 13 de

1 Pelas naus que partiam para Lisboa em 1542 (Xavier-doc. 13, da ilha de Moçambique); pelas naus que partiam em 1543 (Xavier-doc. 15-17, de Goa; Xavier-doc. 19, de Tuticorim).
Doc. 20 – 15 de Janeiro de 1544 135

Janeiro do ano de 15422. A consolação que recebi com elas, Deus Nosso Senhor sabe. Estas cartas entregaram-mas haverá dois meses3. Chegaram tão tarde à Índia, porque o navio em que vinham invernou em Moçambique4.

2. Micer Paulo, Francisco de Mansilhas e eu estamos com muita saúde. Micer Paulo está em Goa, no colégio de Santa Fé: tem o encargo dos estudantes daquela casa. Francisco de Mansilhas e eu estamos com os cristãos do Cabo de Comorim. Há mais de um ano que estou com estes cristãos, dos quais vos faço saber que são muitos5 e se fazem muitos mais cada dia. Logo que cheguei a esta costa, onde eles vivem, procurei saber deles que conhecimento de Cristo Nosso Senhor tinham. Perguntando-lhes, acerca dos artigos da fé, o que criam, ou que mais tinham agora que eram cristãos que quando eram gentios, não obtinha deles outra resposta senão a de que eram cristãos e que, por não entender a nossa língua, não sabiam a nossa lei nem o que haviam de crer6. Como eles não me entendessem nem eu a eles, por ser a sua língua natural a malabar7 e a minha a viscainha, juntei os que entre eles eram mais sabedores e escolhi

2 Esta carta, enviada de Lisboa à Índia em 1542 (Epp. Mixtae I 93) não se encontrou.
3 Provavelmente em Goa, onde Xavier tinha voltado da Pescaria. De Goa partiu de novo Xavier com Mansilhas e o secretário do Governador, António Cardoso, em fins de Dezembro, tendo aportado em Cochim no dia 3 de Janeiro de 1544 (CORREA, Lendas da Índia, IV 335; MX II 180; 185).
4 A urca S. Mateus, que trazia as cartas, teve de invernar em Moçambique e chegou a Goa a 30 de Agosto de 1543 (FIGUEIREDO FALCÃO, Livro 160; CORREA, l.c. IV 264; 305). Inácio voltou a escrever a Xavier em Março de 1543; mas a armada da Índia já tinha partido de Lisboa em 25 de Março, antes de a carta aí chegar (MI Epp. I 267; FIGUEIREDO FALCÃO, Livro 160).
5 Xavier encontrou na Pescaria cerca de 20.000 paravás já baptizados; em fins de 1544 tinha ele baptizado em Travancor uns 10.000 macuas. Por alturas da sua morte, em 1552, a Pescaria e Travancor somavam à volta de 50.000 cristãos (SCHURHAMMER, Die Bekehrung 225-230).
6 Cf. ib. 230-233.
7 Língua tamul.
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Aos Companheiros residentes em Roma pessoas que entendessem a nossa língua e a sua, deles. E depois de nos termos juntado muitos dias, com grande trabalho, traduzimos as orações, começando pelo modo de se benzer confessando as três pessoas serem um só Deus, depois o Credo, Mandamentos, Pai-nosso, Avè-Maria, Salvè-Rainha, e a Confissão geral, do latim em malabar. Depois de as ter traduzido na sua língua e sabê-las de cor, ia por todo o lugar8, com uma campainha na mão, juntando todos os moços e homens que podia e, depois de os ter juntado, ensinava-os cada dia duas vezes. No espaço de um mês, ensinava as orações, dando a seguinte ordem: que os moços, aos seus pais e mães, e a todos os de casa e vizinhos, ensinassem o que na escola aprendiam.
3. Aos domingos, fazia juntar todos os do lugar, tanto homens como mulheres, grandes e pequenos, a dizer as orações na sua língua; e eles mostravam muito prazer e vinham com muita alegria. Começando pela confissão de um só Deus, trino e uno, diziam a grandes vozes o Credo na sua língua: à medida que eu o ia dizendo, todos repetiam. Acabado o Credo, tornava-o a dizer eu só: dizia cada artigo por si e, detendo-me em cada um dos doze, admoestava-os de que cristãos não quer dizer outra coisa senão crer firmemente, sem dúvida alguma, os doze artigos; e, já que eles confessavam que eram cristãos, perguntava-lhes se criam firmemente em cada um dos doze artigos. E assim, todos juntos, a grandes vozes, homens e mulheres, grandes e pequenos, me respondiam a cada artigo que sim, postos os braços sobre o peito, um sobre o outro, em forma de cruz: assim lhes faço dizer mais vezes o Credo que outra oração, pois só por crer nos doze artigos o homem se chama cristão. Depois do Credo, a primeira coisa que lhes ensino são os Mandamentos, dizendo-lhes que a lei dos cristãos tem só dez mandamentos, e que um cristão se diz bom, se os guarda como Deus manda e, pelo contrário, aquele que não os guarda é mau cristão. Ficam muito espantados, tanto cristãos como gentios, de ver quão santa é a lei de Jesus Cristo e conforme com

8 Tuticorim.
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toda a razão natural. Acabado o Credo e os Mandamentos, digo o Pai-nosso e a Avè-Maria: assim como os vou dizendo, assim eles me vão respondendo. Dizemos doze Pai-nossos e doze Avè-Marias em honra dos doze artigos do Credo e, acabados estes, dizemos outros dez Pai-nossos e dez Avè-Marias em honra dos dez Mandamentos, guardando a ordem que se segue. Primeiramente, dizemos o primeiro artigo da fé e, depois de o dizer, digo na sua língua, deles, e eles comigo: Jesus Cristo, Filho de Deus, dai-nos graça para firmemente crer, sem dúvida alguma, o primeiro artigo da fé. E, para que nos dê esta graça, dizemos um Pai-nosso. Acabado o Pai-nosso, dizemos todos juntos: Santa Maria, Mãe de Jesus Cristo, alcançai-nos graça de vosso Filho Jesus Cristo para firmemente sem dúvida alguma crer no primeiro artigo da fé. E, para que nos alcance esta graça, dizemos-lhe a Avè-Maria. Esta mesma ordem seguimos em todos os outros onze artigos.

4. Acabado o Credo e os doze Pai-nossos e Avè-Marias, como disse, dizemos os Mandamentos pela ordem que se segue: primeiramente digo o primeiro mandamento, e todos dizem como eu. Acabando de o dizer, dizemos todos juntos: Jesus Cristo, Filho de Deus, dai-nos graça para amar-vos sobre todas as coisas. Pedida esta graça, dizemos todos o Pai-nosso, acabado o qual, dizemos: Santa Maria, Mãe de Jesus Cristo, alcançai-nos graça de vosso Filho para podermos guardar o primeiro mandamento. Pedida esta graça a Nossa Senhora, dizemos todos a Avè-Maria. Esta mesma ordem seguimos em todos os outros nove mandamentos. De maneira que, em honra dos doze artigos da fé, dizemos doze Pai-nossos com doze Avè-Marias, pedindo a Deus Nosso Senhor graça para firmemente e sem dúvida alguma crer neles; e dez Pai-nossos com dez Avè-Marias, em honra dos dez Mandamentos, rogando a Deus Nosso Senhor que nos dê graça para os guardar. Estas são as petições que por nossas orações lhes ensino a pedir, dizendo-lhes que, se estas graças de Deus Nosso Senhor alcançarem, Ele lhes dará tudo o demais, mais plenamente do que eles o saberiam pedir. A Confissão geral faço-a
138 Aos Companheiros residentes em Roma dizer a todos, especialmente aos que se vão baptizar. E, depois, o Credo, interrogando-os sobre cada artigo, se o crêem firmemente. E, respondendo-me eles que sim e dizendo-lhes [eu] a Lei de Jesus Cristo que terão de guardar para se salvar, os baptizo. A Salvè-Rainha dizemo-la quando queremos acabar as nossas orações.

5. Os jovens, espero em Deus Nosso Senhor que hão-de ser melhores homens que seus pais, porque mostram muito amor e vontade à nossa Lei, e de saber as orações e ensiná-las. Aborrecem-lhes muito as idolatrias dos gentios, a tal ponto que muitas vezes lutam com os gentios e repreendem os seus pais e mães quando os vêem idolatrar, e acusam-nos, de maneira que mo vêm dizer. Quando me avisam de algumas idolatrias, que se fazem fora dos lugares, junto todos os jovens do lugar e vou com eles aonde fizeram os ídolos; e são mais as desonras que o diabo recebe dos jovens que levo, que as honras que seus pais e parentes lhes dão na altura em que os fazem e adoram. Porque tomam os meninos os ídolos e os desfazem em pedaços tão miúdos como cinza9; depois, cospem neles e pisam-nos com os pés; e, finalmente, outras coisas que, embora não pareça bem nomeá-las por seus nomes, é honra dos jovens fazê-las a quem tem tanto atrevimento de fazer-se adorar de seus pais. Estive numa grande povoação de cristãos10, traduzindo as orações da nossa língua para a sua e ensinando-lhas quatro meses.

6. Neste tempo, eram tantos os que me vinham procurar, para que fosse a suas casas rezar algumas orações sobre os enfermos, e outros que com as suas doenças vinham ter comigo que, só em rezar evangelhos sem ter outra ocupação, e em ensinar os jovens, baptizar, traduzir orações, satisfazer a perguntas, não me deixavam;

9 Estes ídolos descreve-os pormenorizadamente Manuel de Moraes, S.I. em 1547: «Seus santos a quem adoram e têm na sua igreja são cavalos de barro, e homens de pedra, e figuras de cobras de pedra, pavões, gralhas; e também adoram a montes de pedra e barro e areia que jazem pelos caminhos» (Doc. Indica I 245-246).
10 Tuticorim.
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e, além disso, em enterrar os que morriam. Era de tal maneira que, em corresponder à devoção dos que me levavam [a suas casas] ou vinham procurar-me, tinha ocupações demasiadas. Mas, para que não perdessem a fé, que à nossa religião e lei cristã tinham, não estava em meu poder negar tão santa procura. E, como a coisa ia em tão grande crescimento que a todos não podia atender, nem evitar paixões sobre a qual casa primeiro havia de ir, vista a devoção da gente, ordenei maneira que a todos pudesse satisfazer: mandava aos jovens, que sabiam as orações, que fossem [eles] às casas dos doentes, e que juntassem todos os de casa e vizinhos, e que dissessem [com] todos o Credo muitas vezes, dizendo ao doente que acreditasse e que sararia; e, depois, as outras orações. Desta maneira satisfazia a todos e fazia ensinar pelas casas e praças o Credo, Mandamentos e as outras orações. E, assim, aos doentes, pela fé dos de casa, vizinhos e sua própria, Deus Nosso Senhor lhes fazia muitas mercês, dando-lhes saúde espiritual e corporal. Usava Deus de muita misericórdia com os que adoeciam, pois pelas doenças os chamava e quase à força os atraía à fé.

7. Deixando neste lugar quem leve por diante o começado, vou visitando os outros lugares11, fazendo o mesmo. De maneira que, nestas partes, nunca faltam pias e santas ocupações. O fruto que se faz em baptizar as crianças que nascem, e em ensinar os que têm idade para isso, nunca vo-lo poderia acabar de escrever. Pelos lugares por onde passo, deixo as orações por escrito e, aos que sabem escrever, mando que as escrevam, e aprendam de cor, e as digam cada dia, dando ordem para que, aos domingos, se juntem todos a dizê-las. Para isso, deixo nos lugares quem fique com o encargo de o fazer.

11 As aldeias cristãs a norte de Tuticorim eram estas: Vaippâr, Chetupar, Vêmbâr. A sul, até Manapar (cf. Xavier-doc. 19,8). De Manapar para sul: Puducare, Periya Tâlai, Ovari, Kûttankuli, Idindakarai, Perumanal, Kûmari, Muttam, Kanniyâkumâri (Cabo de Comorim), Kovakulam, Râjakkamangalam, todas aldeias de paravas.
140 Aos Companheiros residentes em Roma 8. 

Muitos cristãos se deixam de fazer nestas partes, por não haver pessoas que em tão pias e santas coisas se ocupem. Muitas vezes me movem pensamentos de ir aos centros de estudos dessas partes – dando gritos, como alguém que tenha perdido o juízo – e principalmente à universidade de Paris, dizendo na Sorbona12 aos que têm mais letras que vontade, para dispor-se a frutificar com elas. Quantas almas deixam de ir para a glória e vão para o inferno, pela negligência deles! Se, assim como vão estudando em letras, estudassem na conta que Deus Nosso Senhor lhes pedirá delas e do talento que lhes deu, muitos deles se moveriam, tomando meios e Exercícios Espirituais para conhecer e sentir dentro, em suas almas, a vontade divina, conformando-se mais com ela que com as suas próprias afeições, dizendo: «Senhor, aqui estou. Que queres que eu faça? Envia-me aonde quiseres; e se convém, mesmo aos índios13». Quanto mais consolados viveriam, e com mais esperança da misericórdia divina à hora da morte, quando entrassem no Juízo particular a que ninguém pode escapar, alegando a seu favor: «Senhor, entregaste-me cinco talentos, eis aqui outros cinco que eu ganhei com eles!»14 Receio de que muitos dos que estudam nas universidades, estudem mais para, com as letras, alcançarem dignidades, benefícios, bispados, que com desejo de conformar-se com a necessidade que as dignidades e estados eclesiásticos requerem. É costume dizerem os que estudam: Desejo saber letras para alcançar algum benefício ou dignidade eclesiástica com elas e, depois, com a tal dignidade, servir a Deus. De maneira que, segundo as suas desordenadas afeições, fazem as suas eleições, temendo que Deus não queira o que eles querem, não consentindo as suas desordenadas afeições deixar na vontade de Deus Nosso Se-

12
O colégio da Sorbona, fundado em 1257, já então era o centro da universidade de Paris.
13 A propósito escrevia em 1558 o P. H. Henriques: «Sempre se pode fazer muito serviço a Deus, posto que sejam estas partes pelas quais a Cristo disse São Tomé: ‘envia-me aonde quiseres, mas não aos índios’» (Goa 8, 149r).
14 Mt 25,20.
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nhor esta eleição15. Estive quase movido a escrever à universidade de Paris, ao menos ao nosso Mestre de Cornibus16 e ao Doutor Picardo17, quantos mil milhares de gentios se fariam cristãos se houvesse operários, para que [lá] fossem solícitos em buscar e favorecer as pessoas que não buscam os seus próprios interesses mas os de Jesus Cristo18. É tão grande a multidão dos que se convertem à fé de Cristo, nesta terra onde ando, que, muitas vezes, me acontece sentir cansados os braços de baptizar; e não poder falar, de tantas vezes dizer o Credo e os Mandamentos, na sua língua, deles, e as outras orações, com uma exortação que sei na sua língua, na qual lhes declaro o que quer dizer cristão, e que coisa é paraíso, e que coisa inferno, dizendo-lhes quais são os que vão a um e quais a outro. Mais que todas as outras orações, digo-lhes muitas vezes o Credo e os Mandamentos. Há dia em que baptizo toda uma povoação e, nesta Costa onde ando, há trinta povoações de cristãos19.

15 Cf. Preâmbulo para fazer eleição nos Exercícios Espirituais de S. Inácio (MI, Exercitia 372-373).
16 Pedro de Cornibus, OFM, nascido em Beaune (Borgonha) por 1480, doutor pela universidade de Paris em 1524, mestre de Xavier, Fabro e Bobadilla, verdadeiro amigo da Companhia de Jesus, pregador eminente, faleceu em Paris em 1555 (VILLOSLADA, La Universidad de Paris 220 227 430; Fabri Mon. 99; Epp.Mixtae I 64).
17 Doutor Picardo Fraçois Le Picard), nascido em Paris em 1504, professor de Teologia em 1534, célebre pregador e doutor pela Sorbona, principal adversário dos reformadores, mestre de Xavier, Fabro e Bobadilla, sincero amigo da Companhia de Jesus, morreu com fama de santidade em Paris em 1556 (POLANCO, Chron I 94, 419; II 297; III 291; IV 323; V 332, 335; VI 486; E. DOUMERGUE, Jean Calvin , Lausanne 1899, I 240-241; VILLOSLADA, l.c. 431; MI, Epp. I 133; Bobad.Mon. 561; Epp. Mixtae I 64, 69, 582-583).
18 Fil 2,21.
19 As localidades cristãs da Costa da Pescaria já referidas por nós (cf. nota 11 e Xavier-doc. 19,8) somam 20. Podemos acrescentar outras localidades menores, como Pudukudi perto de Manapar, além de Pudukudi perto de Alentalai, duas aldeias de careas e a aldeia de Tomás da Mota perto de Kombuturê (Xavier-doc. 30,3; 39,5), talvez também Mukur perto de Vêmbâr e ainda, para o norte, as localidades de careas Periapattanam e Vêdâlaí (SCHURHAMMER, Die Bekehrung 266).
142 Aos Companheiros residentes em Roma 

O Governador desta Índia é muito amigo dos que se fazem cristãos. Fez mercê de 4.000 peças de ouro20 cada ano e, estas, para que apenas se gastem e dêem àquelas pessoas que, com muita diligência, ensinam a doutrina cristã nos lugares dos recém-convertidos à fé. É muito amigo de todos os da nossa Companhia. Deseja muito que venham a estas partes alguns da nossa Companhia, e assim me parece que o escreve ao Rei.

9. No ano passado, escrevi21 acerca de um colégio, que se está a fazer na cidade de Goa, no qual há já muitos estudantes. São de diversas línguas, e todos de geração de infiéis. Entre eles, internos no colégio, onde há muitos edifícios feitos, há muitos que aprendem latim e, outros, a ler e escrever. Micer Paulo está com estes estudantes do colégio: diz-lhes Missa todos os dias, e confessa-os, e nunca deixa de dar-lhes doutrina espiritual. Tem [também] o encargo das coisas corporais de que têm necessidade os estudantes. Este colégio é muito grande: nele podem viver mais de quinhentos estudantes. Tem rendas suficientes para os manter: são muitas as esmolas que a este colégio se fazem, e o Governador favorece-o largamente. É caso para todos os cristãos darem graças a Deus Nosso Senhor pela fundação desta casa, que se chama o Colégio da Santa Fé. Antes de muitos anos, espero da misericórdia de Deus Nosso Senhor que o número de cristãos se há-de multiplicar grandemente e as fronteiras da Igreja se hão-de ampliar por meio dos que neste santo colégio estudam.

10. Há nestas partes, entre os gentios, uma classe a que chamam brâmanes: estes mantêm toda a gentilidade. Têm o encargo das casas20. Estas peças de ouro eram fanões, moedas muito miúdas, em uso na Pescaria e norte de Ceilão. Dez fanões equivaliam a 1 xerafim de ouro = 1 pardau de prata = 300 reis. Portanto, no tempo de Xavier, 4.000 fanões valiam 400 xerafins de ouro = 400 pardaus de prata = 210 cruzados. Era o tributo dos paravas para ao «chapins da rainha». Com o andar dos anos, os pardaus e os cruzados foram perdendo valor, enquanto o dos fanões se manteve invariável naquela região. Por isso não admira que Lucena, no seu tempo (ano 1600), calcule 4.000 fanões = 400 cruzados.
21 Xavier-doc. 16.
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onde estão os ídolos: é a gente mais perversa do mundo. Destes se percebe o que diz o Salmo: «Da gente não santa, do homem iníquo e fraudulento, livra-me, Senhor»22. É gente que nunca diz a verdade. Está sempre a pensar como há-de subtilmente mentir e enganar os pobres simples e ignorantes, dizendo que os ídolos pedem que lhes levem, para oferecer, certas coisas; mas estas não são outras senão as que os brâmanes fingem e querem para manter as suas mulheres, filhos e casas. Fazem crer à gente simples que os ídolos comem; e há muitas pessoas que, mesmo que não almocem nem jantem, oferecem certa moeda23 para o ídolo. Duas vezes ao dia, com grande festa de atabales, comem, dando a entender aos pobres que são ídolos que estão a comer. Quando começa a faltar o necessário aos brâmanes, dizem ao povo que os ídolos estão muito zangados com ele, porque não lhes leva as coisas que, por eles, lhes mandam pedir; e que, se não lhas fornecem, tenham cuidado com eles, pois os hão-de matar, ou dar-lhes doenças, ou lhes hão-de mandar os demónios a suas casas. E os tristes simples, crendo que será assim, de medo que os ídolos lhes façam mal, fazem o que os brâmanes querem.

11. São, estes brâmanes, homens de poucas letras24; e, o que lhes falta em virtude, têm de iniquidade e maldade em grande aumento. Aos brâmanes desta Costa onde ando, pesa-lhes muito que eu nunca outra coisa faça senão descobrir as suas maldades. Eles confessam-me a verdade, quando estamos a sós, de como enganam o povo: confessam-me, em segredo, que não têm outro património senão aqueles ídolos de pedra, dos quais vivem, fingindo mentiras.
Têm estes brâmanes para si, que eu sei mais que todos eles juntos. Mandam-me visitar, e pesa-lhes muito que eu não queira aceitar os presentes que me mandam. Tudo isto fazem, para que eu não

22 Ps 42,1.
23 Fanão.
24 Os brâmanes instruídos da região mais interior, por ex. os do Maduré, entre os quais trabalhou o Padre De Nobili mais tarde, não os conheceu Xavier.

144 Aos Companheiros residentes em Roma descubra os seus segredos, dizendo-me que eles bem sabem que não há senão um Deus, e que eles rezarão por mim. Em paga de tudo isto digo-lhes, da minha parte, o que me parece. Depois, aos tristes simples que, por puro medo, são seus devotos, manifesto-lhes os seus enganos e burlas, até cansar. Muitos, pelo que lhes digo, perdem a devoção ao demónio e fazem-se cristãos. Se não houvesse brâmanes, todos os gentios se converteriam à nossa fé. As casas onde estão os ídolos e brâmanes, chamam-se pagodes.
Todos os gentios destas partes sabem muito poucas letras; para mal, sabem muito. Só um brâmane, desde que estou nestas partes, fiz cristão: é jovem e muito bom homem. Tomou por ofício ensinar aos jovens a doutrina cristã.
Ao visitar os lugares de cristãos, passo por muitos pagodes. Uma vez passei por um, onde havia mais de duzentos brâmanes25, e vieram-me ver. Entre outras muitas coisas de que falamos, pus-lhes uma questão, e era: que me dissessem que é que os seus deuses e ídolos, a quem adoravam, lhes mandavam fazer para ir para a glória. Foi grande a contenda entre eles sobre quem me responderia. Disseram a um dos mais antigos que respondesse. O velho, que tinha mais de oitenta anos, disse-me que lhe dissesse eu primeiro o que mandava o Deus dos cristãos fazer. Eu, percebendo a sua ruindade, não quis dizer coisa alguma antes de ser ele a dizer. Então foi-lhe forçado manifestar as suas ignorâncias. Respondeu-me que duas coisas lhes mandavam fazer os seus deuses para ir para onde eles estão: a primeira era não matar vacas, as quais eles adoram; e a segunda era dar esmolas, e estas aos brâmanes que servem os pagodes. Ouvida esta resposta, com pena de os demónios escravizarem os nossos próximos de tamanha maneira, a ponto de em lugar de Deus se fazerem adorar deles, levantei-me, dizendo aos brâmanes que ficassem sentados e, a grandes vozes, disse o Credo e os Mandamentos da lei na língua deles,


25 Parece referir-se ao pagode de Trichendur, a que acorriam peregrinos de toda a parte.
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fazendo alguma detenção em cada Mandamento. Acabados os mandamentos, fiz-lhes uma exortação na língua deles, explicando-lhes que coisa é paraíso e que coisa é inferno, e dizendo-lhes quem vai para um e quem para outro. Depois de acabada esta prática, levantaram-se todos os brâmanes e deram-me grandes abraços, dizendo-me que verdadeiramente o Deus dos cristãos é o verdadeiro Deus, pois os seus Mandamentos são tão conformes a toda a razão natural.

Perguntaram-me se a nossa alma juntamente com o corpo morria, como a alma dos brutos animais. Deu-me Deus Nosso Senhor tais razões, conformes às suas capacidades, que lhes fiz entender claramente a imortalidade das almas, coisa de que eles mostraram muito prazer e contentamento. As razões, que a esta gente idiota se hão-de dar, não hão-de ser tão subtis como as que se encontram escritas em doutores muito escolásticos. Perguntaram-me por onde saía a alma, quando um homem morria; e quando um homem dormia e sonhava estar numa terra com os seus amigos e conhecidos [como a mim muitas vezes me acontece estar convosco, caríssimos], se a sua alma ia até lá, deixando de informar o corpo. E mais me pediram: que lhes dissesse se Deus é branco ou negro26, dada a diversidade de cores que vêem nos homens. Como os desta terra são negros, parecendo-lhes bem a sua cor, dizem que é negro. Por isso a maioria dos ídolos são negros: untam-nos muitas vezes com azeite; cheiram tão mal que é coisa de espanto; são tão feios que, ao vê-los, espantam. A todas as perguntas que me fizeram os satisfiz, a parecer deles. Mas, quando com eles chegava a conclusão de que se fizessem cristãos, pois já conheciam a verdade, respondiam o que muitos entre nós costumam responder: Que dirá o mundo de nós, se esta mudança de estado fazemos no nosso modo de viver? E outras tentações em pensar que lhes venha a faltar o necessário.

26 Os indianos distinguem deuses negros e brancos; assim, Vishnu pintam-no de negro e a Shiva de branco.
146 Aos Companheiros residentes em Roma 12. 

Um só brâmane encontrei num lugar desta Costa, que sabia alguma coisa, porque, me diziam, tinha estudado num centro de estudos de nomeada. Procurei encontrar-me com ele e consegui maneira de nos vermos. Disse-me ele, em grande segredo, que a primeira coisa que fazem os que ensinam naquele centro de estudos, é ter juramento dos que vão aprender, de nunca dizer certos segredos que ensinam. Mas a mim, este brâmane, disse-me esses segredos em grande segredo, por alguma amizade que comigo tinha. Um dos segredos era este: que nunca dissessem que há um só Deus, criador do céu e da terra e que está nos céus; e que ele adorasse esse Deus e não os ídolos, que são demónios. Têm algumas escrituras, nas quais têm os mandamentos. A língua que naquele centro de estudos ensinam, é entre eles como o latim entre nós27. Disse-me muito bem os mandamentos, cada um deles com uma boa explicação. Guardam os domingos, estes que são sábios, coisa para não se poder crer. Não dizem outra oração, aos domingos, senão esta, e muitas vezes: «Om cirii naraina noma»28, que quer dizer: «Adoro-te, Deus, com a tua graça e ajuda para sempre»29. Esta oração dizem-na muito de passo e baixo, para guardar o juramento que fazem. Disse-me que lhes proibia, a lei natural, ter muitas mulheres; e que está nas suas escrituras que há-de vir tempo em que todos hão-de viver debaixo da mesma lei. Disse-me mais, este brâmane: que ensinam, naquele centro de estudos, muitos encantamentos30.

27 Língua sânscrito.
28 Om Srî Narâyana namah, invocação comum dos brâmanes da seita Vishnu.
29 Mais exactamente: Om (nome místico secreto da suma deidade), Srî (santo), Narâyana (nome de Vishnu repousando sobre o mar), namah (adoração), isto é, «Om! Salvè, santo Narâyana!». Não confundir esta oração com a chamada Gâyatrî (cf. DALGADO I 413).
30 Ao que parece, este brâmane pertencia à seita Mâdhva que, em tempo de Xavier, florescia na corte vijayanagarensi e sobretudo na corte de Sevvappa Nayaka (na região de Tanjaore) a que estava sujeito Negapatam (HERAS 514-515; 521--522). Tinha muitos seguidores na região tamulica (ib. 531). A sua doutrina era a seguinte: há um deus, Vishnu, (mas também as almas e a matéria são eternas).

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Pediu-me que lhe dissesse as coisas mais importantes que os cristãos têm na sua lei, que ele me prometia não as descobrir a ninguém. Eu respondi-lhe que não lhas diria se, primeiro, não me prometesse não guardar em segredo as coisas mais importantes que, da lei dos cristãos, eu lhe dissesse. E logo ele me prometeu publicar tudo. Então disse-lhe e expliquei-lhe, muito a meu prazer, estas palavras importantes da nossa lei: «O que crer e for baptizado será salvo»31. Escreveu-as na sua língua, com a explicação delas em que lhe disse todo o Credo. Na explicação, acrescentei os Mandamentos, pela conformidade que há entre eles e o Credo. Disse-me que numa noite sonhou, com muito prazer e alegria, que havia de ser cristão, e que havia de ser meu companheiro e andar comigo. Pediu-me que o fizesse cristão oculto e com mais certas condições que, por não serem honestas e lícitas, deixei de o fazer. Espero em Deus que o há-de ser, sem nenhuma delas. Tenho-lhe dito que ensinem a gente simples a adorar um só Deus, criador do céu e da terra e que está nos céus; ele, pelo juramento que fez, receoso de que o demónio o mate, não o quer fazer.

13. Destas partes, não sei que mais escrever-vos, a não ser que são tantas as consolações que Deus Nosso Senhor comunica aos que andam entre estes gentios a convertê-los à fé de Cristo, que, se contentamento há nesta vida, se pode dizer que é este. Muitas vezes me acontece ouvir dizer a uma pessoa que anda entre estes cristãos: «Ó Senhor, não me deis muitas consolações nesta vida32; ou, já que as dais por vossa infinita bondade e misericórdia, levai-me para a Vishnu é o formador do mundo. Os outros ídolos, ou são diabos ou revelações de Vishnu, e todos servos de Vishnu. Os mandamentos, segundo eles, são dez, e a sua oração é a já mencionada. (cf. H. VON GLASENAPP, Madhva’s Philosophie des Vishnu-Glaubens, Bonn 1923, 38; 44; 46-51; 66-75; 85-86. Encyclopedia of Religion and Ethics VIII 232-235).
31 Mc 16,16.
32 Cf. a exclamação tantas vezes atribuída a Xavier: «Basta, Senhor, basta!» (MX II 950).

148 Aos Companheiros residentes em Roma vossa santa glória, pois dá tanta pena viver sem ver-vos, depois de tanto vos comunicardes interiormente às criaturas». Oh, se os que estudam letras, tantos trabalhos pusessem em ajudar-se para sentir o gosto delas, como noites e dias trabalhosos suportam para as aprender! Oh, se aqueles contentamentos que um estudante busca em entender o que estuda, os buscasse em dar a sentir aos próximos o que lhes é necessário para conhecer e servir a Deus, quanto mais consolados e aparelhados se achariam para dar conta, quando Cristo lhes perguntasse: «Dá-me conta da tua administração»33!

14. As recreações que nestas partes tenho, são as de recordar--me muitas vezes de vós, caríssimos Irmãos meus, e dos tempos em que pela muita misericórdia de Deus Nosso Senhor vos conheci e convosco tratei, conhecendo em mim e sentindo dentro, em minha alma, quanto por minha culpa perdi do tempo em que convosco tratei, por não ter-me aproveitado dos muitos conhecimentos que Deus Nosso Senhor de si vos tem comunicado. Faz-me Deus tanta mercê, por vossas orações e lembrança contínua que de mim tendes em encomendar-me a Ele, que em vossa ausência corporal reconheço que Deus Nosso Senhor, graças ao vosso favor e ajuda, me dá a sentir a minha infinita multidão de pecados, e me dá forças para andar entre infiéis; disto dou graças a Deus Nosso Senhor, muitas, e a vós, caríssimos Irmãos meus. Entre muitas mercês, que Deus Nosso Senhor nesta vida me tem feito e faz todos os dias, esta é uma: que em meus dias vi o que tanto desejei, que foi a confirmação da nossa regra e modo de viver34. Graças sejam dadas a Deus Nosso Senhor para sempre, pois teve por bem manifestar publicamente o que no íntimo, ao seu servo Inácio e Pai nosso, deu a sentir.
No ano passado escrevi-vos35 o número de Missas que, nestas partes das Índias, pelo Rvmº cardeal Guidacion, dissemos, Micer Paulo

33 Lc 16,2.
34 Cf. Xavier-doc. 12,6.
35 Cf. Xavier-doc. 12,1.
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e eu: as que, desde então para cá dissemos, não sei o número delas, mas crede que todas as nossas missas são por ele. Para consolação nossa, fazei-nos saber quanto se assinala no serviço a Deus S.S.Rmª, e também para acrescentar-nos a devoção, a Micer Paulo e a mim, de sermos perpétuos capelães seus. Não deixeis de escrever-nos do fruto que na Igreja faz.
Termino, rogando a Deus Nosso Senhor que, já que por sua misericórdia nos juntou e por seu serviço nos separou para tão longe uns dos outros, nos torne a juntar na sua santa glória.

15. E para alcançar esta mercê e graça, tomemos por intercessores e advogados todas aquelas santas almas destas terras onde ando, que, depois que por minha mão baptizei, antes de perderem o estado de inocência Deus Nosso Senhor levou para a sua santa glória, cujo número creio que passa de mil. A todas estas santas almas rogo que nos alcancem de Deus esta graça: que em todo o tempo que estivermos neste desterro, sintamos no íntimo das nossas almas sua santíssima vontade e essa perfeitamente cumpramos.

De Cochim, a 15 de Janeiro, ano de 1544
Vosso caríssimo em Cristo irmão
FRANCISCO



AVE AVE AVE MARIA!

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